24/05/2016

Notícia: garota de programa pode cobrar por serviço prestado e não pago?

ATIVIDADE LÍCITA

Garota de programa pode cobrar na Justiça por serviço que não foi pago


Fonte: http://www.conjur.com.br/2016-mai-20/garota-programa-cobrar-justica-servico-nao-foi-pago

Profissionais do sexo têm direito a proteção jurídica e, em razão disso, podem cobrar por esse tipo de serviço em juízo. Com esse entendimento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu um Habeas Corpus a uma garota de programa acusada de roubar um cordão folheado a ouro de um cliente que não quis pagar.
Ao analisar o caso, o colegiado concluiu que a atitude da profissional não caracterizou roubo, mas o crime de exercício arbitrário das próprias razões, previsto no artigo 345 do Código Penal, cuja pena máxima é de um mês de detenção.
Segundo o relator do caso, ministro Rogerio Schietti Cruz, “não se pode negar proteção jurídica àqueles que oferecem serviços de cunho sexual em troca de remuneração, desde que, evidentemente, essa troca de interesses não envolva incapazes, menores de 18 anos e pessoas de algum modo vulneráveis e desde que o ato sexual seja decorrente de livre disposição da vontade dos participantes”.
Primeira instância
A profissional foi condenada por roubo, pela primeira instância, com base no artigo 345 do Código Penal, mas o Tribunal de Justiça do Tocantins (TJ-TO) reformou a decisão. Contudo, a corte concluiu que o compromisso de pagar por sexo não seria passível de cobrança judicial, pois a prostituição não é uma atividade que deva ser estimulada pelo Estado.
Mas Schietti, ao analisar o recurso, destacou que o Código Brasileiro de Ocupações de 2002, do Ministério do Trabalho, menciona a categoria dos profissionais do sexo, o que “evidencia o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, de que a atividade relacionada ao comércio sexual do próprio corpo não é ilícita e, portanto, é passível de proteção jurídica”.
Ainda segundo o ministro, a Corte de Justiça da União Europeia já considera a prostituição voluntária uma atividade econômica lícita. Para o relator, essas ponderações “não implicam apologia ao comércio sexual, mas apenas o reconhecimento, com seus naturais consectários legais, da secularização dos costumes sexuais e da separação entre moral e Direito”.
O ministro destacou que a garota de programa pensava estar exercendo uma pretensão legítima, já que não recebeu os R$ 15 prometidos em acordo verbal pelo cliente.
O colegiado enquadrou o caso no artigo 345 do Código Penal, que tem pena bem menor do que na hipótese de roubo. Mas como o caso ocorreu em 2008, os ministros acabaram reconhecendo a prescrição do crime. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
Clique aqui para ler a decisão.
HC 211.888
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Dica de leitura: Quando morrer na contramão não mais atrapalha o tráfego - Maria Cláudia CACHAPUZ*

Dica de Leitura: Quando morrer na contramão não mais atrapalha o tráfego
Maria Cláudia CACHAPUZ*

Fonte: http://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/12/Cachapuz-civilistica.com-a.4.n.2.20151.pdf 

civilistica.com || a. 4. n. 2. 2015 || 1 Quando morrer na contramão não mais atrapalha o tráfego
Maria Cláudia CACHAPUZ*

RESUMO: Na medida em que a filosofia prática parte da preocupação em elucidar, do ponto de vista moral, que critérios são utilizados para disciplinar os temas do igual interesse de cada um e do igualmente bom para todos em sociedade, o problema exposto no texto reside em explicar como as normas morais devem ser fundamentadas e aplicadas, ainda que não haja suficiente convicção do porquê devemos efetivamente ser morais para solucionar casos jurídicos que envolvam direitos fundamentais no âmbito das relações privadas. Partindo-se de um caso concreto e similar ao “dilema do bonde”, de Philippa Foot, o presente texto busca comparar as alternativas de decisão possíveis à luz do pensamento de Habermas, Dworkin, Nussbaum e Singer, num comparativo entre éticas perfeccionistas e ética utilitarista. Por fim, visa esclarecer a medida de contribuição do discurso jurídico para, no âmbito do Direito, optar-se pela resposta correta ao caso concreto.

PALAVRAS-CHAVE: Filosofia moral; direitos fundamentais; relações entre privados; discurso jurídico; casos difíceis.

SUMÁRIO: Introdução; Parte I: Autonomia e igualdade; Parte II: Liberdade e discurso jurídico; Conclusão; Bibliografia.

ENGLISH TITLE: When Dying in the Contraflow no More Obstructs Traffic

ABSTRACT: As the practical philosophy has for ending the proposal of taking care of equal interests in society and equal good for everybody, the problem developed in this text correspond to explain how moral rules must be raised and applied, even when isn ́t it enough to know why we must be moral nowadays. The idea is also to know how to solve law hard cases in the relations between privates. From the “trolley dilemma” of Philippa Foot, this text does a comparison among Habermas’, Dworkin’s, Nussbaum’s and Singer’s doctrines in practical philosophies, especially between perfectionists’ doctrines and the utilitarianism. In the end, the text offers a contribution do jurisdictional discourse in Law in order to build the right answer for the judicial case.

KEYWORDS: Moral philosophy; fundamental rights; relations beetween privates; jurisdictional discourse; civil hard cases.
SUMMARY: Introduction; Part I: Autonomy and equality; Part II: Liberty and legal discourse; Conclusion; Bibliography.

Introdução
No ano de 2015, em plena estação férrea do Rio de Janeiro, um dilema do campo filosófico deixou de ocupar as preocupações e o teste metafísico - portanto, ainda quando proposto em caráter hipotético -, para ganhar espaço na construção de um juízo de evidência real: Um maquinista restou autorizado, pela autoridade responsável de uma concessionária de prestação de serviço público ferroviário, a passar com o trem em movimento sobre o corpo de um vendedor ambulante atropelado, há instantes, sobre os trilhos do trem (DUARTE, 2015). Para tal tomada de decisão, algumas condições fáticas à rápida ponderação efetuada foram oferecidas: (i) a ausência aparente de qualquer sinal de vida ao vendedor ambulante em face do atropelamento, mesmo que ainda não atestada clinicamente uma situação de morte até o momento de tomada de decisão; (ii) o atraso constatado para pronto atendimento e retirada do corpo do local do atropelamento, a indiciar a real demora pela autoridade de trânsito no atendimento emergencial em horário de tráfego intenso de passageiros; (iii) a constatação de que, com eventual parada do trem em movimento, outros dois veículos férreos seriam afetados no espaço de tempo computado para a prestação do serviço de transporte ao público, retardando o trânsito de cerca de seis mil usuários da estação naquele horário; (iv) a verificação de que a distância existente entre os trilhos do trem e a primeira altura da base do vagão seria suficiente para evitar o efetivo atrito entre o corpo estendido e o veículo em movimento; (v) a avaliação prévia de que o atropelamento poderia ter sido motivado pela vítima, atirando-se sobre os trilhos do trem para provocar a própria morte portanto, supondo-se um desejo autônomo de provocar o resultado morte; (vi) a real possibilidade de parar com antecipação o trem, evitando-se o dilema moral, mas causando-se provável prejuízo, inclusive econômico, aos passageiros que não deram causam direta ao incidente.
A decisão foi tomada com suficiente consulta à autoridade competente e com espaço possível à reflexão. A opção consciente e instantânea - foi pela adoção de uma solução que partisse da construção de um juízo reflexivo fundado numa ética utilitarista, em que restaram ponderados, para o caso, os meios disponíveis ao alcance de um menor prejuízo a coletividade ainda produtiva envolvida no processo - autoridade estatal, autoridade delegada, condutor do trem, passageiros. Como em todo o exercício decisório para efeito de aplicação de uma ética funcionalista - em torno de um projeto estratégico de alcance de fins -, a intersubjetividade pressuposta no teste da universalidade perdeu força, a priori, para o alcance de um projeto coletivo. Pelo exercício pragmático, literalmente, a conduta de passar por cima da pessoa restou considerada como uma condição fática ponderável em momento de tráfego intenso.
Diferente não é a proposta de exame metafísico oferecida pela filósofa Philippa Foot (2002), a propósito do enfrentamento de dilemas morais e da circunstância ética envolvida, quando analisadas virtudes, desejos e interesses particulares. No dilema de Foot, um bonde está fora de controle em uma estrada. No caminho, cinco pessoas amarradas na pista. É possível acionar um mecanismo que desviará o bonde para um percurso diferente, em que há apenas uma pessoa igualmente atadas. Nessa hipótese, deve ser adotado o desvio? Numa visão funcionalista do problema, a resposta fundada numa análise quantitativa em relação aos prováveis atingidos pelo bonde autorizaria a conclusão pela adoção do caminho de desvio.
A opção por uma filosofia utilitarista exige, necessariamente em todos os níveis de enfrentamento de dilemas filosóficos, uma abordagem distinta em relação ao tema da personalidade. Requer uma crença na dessacralização da concepção de vida humana, como defende Peter Singer (2003), que parta de uma inversão da análise universal pressuposta na razão prática dos modernos, para alcançar uma ética prática distinta: a decisão a ser tomada exige antes de qualquer teste da universalidade um "raciocínio pré-ético", em que as condições a serem ponderadas digam respeito, unicamente, a interesses daqueles que sejam afetados pela decisão, de forma a eleger o modo de atuar que apanhe as "melhores consequências" (SINGER, 2009, p. 25). O enfoque utilitarista, portanto, é uma postura mínima a ser observada: "Uma primeira etapa que alcançamos ao universalizar a tomada de decisões interessadas"1 (SINGER, 2009, p. 26). Apenas por boas razões, suficientemente demonstradas, é que se poderia ir além de um raciocínio estratégico, acolhendo um pressuposto de universalização de conduta: "Até que nos sejam oferecidas estas razões, temos motivos para seguirmos sendo utilitaristas"2 (SINGER, 2009, p. 26).
O teste moral exigido pelo utilitarismo, portanto, não parte de aspirações universais. Tampouco se preocupa em creditar à autonomia do indivíduo mesmo quando parta de uma concepção fundada na intersubjetividade papel central no exame do dilema filosófico. O que importa é centrar na ideia de igualdade a resolução dos problemas concretos apresentados e a partir das condições empíricas oferecidas à resolução: “A essência do princípio da igual consideração de interesses é que, em nossas deliberações morais, damos a mesma importância aos interesses parecidos a todos aqueles a quem afetamos com nossas ações3 (SINGER, 2009, p. 32).


1 Na tradução livre da versão espanhola: Una primera etapa que alcanzamos al universalizar la tomada de decisiones interesadas.
2 Na tradução livre da versão espanhola: Hasta que no nos sean oferecidas estas razones, tenemos motivos para seguir siendo utilitaristas.”

3 Na tradução livre da versão espanhola: “La esencia del principio de igual consideración de intereses es que en nuestras deliberaciones morales damos la misma importancia a los intereses parecidos de todos aquellos a quienes afectan nuestras acciones.”

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No dilema do trem, a perplexidade extraída de uma decisão como a adotada pela concessionária do serviço férreo em torno da ideia de autonomia e de intersubjetividade é proporcional ao assombro provocado pelo enfoque de abordagem utilitarista, quando parte este de uma exigência de raciocínio estratégico e que, apenas por exceção, atinge uma universalização em relação à solução de colisão de liberdades em sociedade. De forma diversa ao conceito de base da doutrina perfeccionista kantiana, no utilitarismo clássico, a concepção de autonomia parte de premissas de relevância distintas para o intérprete, principalmente quando envolve interesses de alcance não apenas individual, mas intersubjetivo. É o que permite a Peter Singer, ainda que de forma lógica e coerente aos ideais regulativos funcionalistas, compreender que “possuir uma personalidade moral não constitui uma base satisfatória para o princípio de que todos os seres humanos são iguais4. Conforme Singer, se, para os modernos, autonomia representa “a capacide de eleger, de fazer e de atuar segundo as próprias decisões5 (SINGER, 2009, p. 106), a partir de uma concepção utilitarista não necessariamente a autonomia seria considerada um princípio moral básico, “nem sequer um princípio moral válido6 (SINGER, 2009, p. 106).

Parte I: Autonomia e igualdade
No livro “O futuro da natureza humana”, Jürgen Habermas parte da análise da condição científica mais recente que permite, numa combinação entre medicina reprodutiva e técnica genética, chegar a um método de diagnóstico genético de pré- implantação de embriões. Ou seja, permite-se hoje submeter o embrião que se encontra num estágio de oito células a um exame genético de precaução, antes da implantação, de forma a, dentre outras coisas, evitar-se o risco de transmissão de doenças hereditárias. O assombro de Habermas é relacionado, justamente, à constatação de um progresso das ciências biológicas associado ao desenvolvimento da biotecnologia de forma a (i) ampliar as possibilidades de ações humanas conhecidas e (ii) possibilitar um novo tipo de intervenção. Esta, para Habermas, é a fronteira confusa "entre a natureza do que somos e a disposição orgânica que damos a nós mesmos" (HABERMAS, 2004b, p. 17).
A filosofia prática, portanto, parte da preocupação em elucidar, do ponto de vista moral, que critérios passamos a adotar para analisar situações que possam enfrentar os


4 Na tradução livre da versão espanhola: Poseer una ‘personalidad moral’ no constituye uma base satisfactoria para el principio de que todos los seres humanos son iguales.
5 Na tradução livre da versão espanhola: “La capacidad de elegir, de hacer y actuar según las propias decisiones.

6 Na tradução livre da versão espanhola: “Ni tan siquiera um principio moral válido.”

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temas do igual interesse de cada um e do igualmente bom para todos em sociedade. Isto passa a ser um problema contemporâneo permanente pelo fato de que, por mais que nos convençamos de que as teorias deontológicas pós-Kant expliquem como as normas morais devem ser fundamentadas e aplicadas - e quanto a isso talvez não se tenha dúvidas em relação à construção da razão-prática -, ainda não nos encontramos suficientemente convictos do porquê devemos efetivamente ser morais. E, quanto a isso, como ressalta Habermas, "certamente a teoria moral paga um preço muito alto por dividir seu trabalho com uma ética especializada nas normas da autocompreensão existencial" (HABERMAS, 2004b, p. 7).
Para quem não parta, por definição, de um modelo de moral perfeccionista, uma resposta estratégica a tal tipo de indagação - saber por que devemos observar condutas morais apesar de tudo - talvez esteja fundada numa situação de risco. Na medida em que, seguindo Habermas, reconhecemos que os avanços tecnológicos passam a exigir uma nova "margem de decisão" (HABERMAS, 2004b, p. 18) inclusive quanto aos limites à geração de vida humana, corremos um risco sério de termos que estabelecer um novo parâmetro à autocompreensão. Ou decidimos de forma autônoma, "segundo considerações normativas que se inserem na formação democrática da vontade" (HABERMAS, 2004b, p. 18), ou podemos resultar sujeitos à arbitrariedade, "em função de preferências subjetivas, que serão satisfeitas pelo mercado" (HABERMAS, 2004b, p. 18).
A dupla dinâmica de enfoque em relação à dimensão de autonomia do indivíduo - como individualidade e como intersubjetividade - aproxima a discussão filosófica do campo de análise da liberdade em termos jurídicos. Quando se fala em autonomia, se está, em verdade, discutindo questão mais ampla que a pressuposta num direito geral de liberdade pelo indivíduo. Habermas é quem estabelece uma distinção bastante clara: os conceitos se diferenciam pelo âmbito de sua abrangência. Enquanto a liberdade é sempre subjetiva, porque fundada nas peculiaridades do indivíduo – suas “máximas de prudência, pelas preferências ou motivos racionais” (HABERMAS, 2004) -, a autonomia é um conceito que pressupõe uma estrutura de intersubjetividade, determinado por máximas aprovadas pelo teste da universalização.
Quanto à liberdade subjetiva, não é difícil imaginar que algumas pessoas possam gozar da liberdade e outras não, ou que algumas pessoas possam ser mais livres do que outras. A autonomia, ao contrário, não é um conceito distributivo e não pode ser alcançada individualmente. Nesse sentido enfático, uma pessoa só pode ser livre se todas as demais o forem igualmente. A ideia que quero sublinhar é a seguinte: com sua noção de autonomia Kant já introduz um conceito que só pode explicitar-se plenamente dentro de uma estrutura intersubjetivista. (HABERMAS, 2004, p. 13)
Isso significa compreender que, para efeito de análise do problema posto dentro das bases de um discurso jurídico - que essencialmente trabalha com categorias morais -, ainda que se possa reconhecer a liberdade do indivíduo em abstrato, é necessário que lhe seja possível visualizar também autonomia em potencial, porque autorizada a percepção como participante de uma comunidade moral ou “como uma comunidade formada de indivíduos livres e iguais que se sentem obrigados a tratar uns aos outros como fins em si mesmos” (HABERMAS, 2004, p. 13). Participar do discurso jurídico não importa, portanto, em simples verificação de uma potencial liberdade em sociedade, pelas escolhas realizadas de forma ampla. É preciso que se reconheça autonomia ao indivíduo, porque, no mínimo, ao menos em potencial, há o reconhecimento intersubjetivo de que tratamos, uns aos outros, como fins em si mesmos.
Assim, toda e qualquer decisão acerca do dilema do trem, para quem parta de uma concepção moderna de liberdade, fundada a partir de um enfoque filosófico humanista, é antes a construção de um juízo que não dispensa, para a situação concreta, o exercício do teste transcendental de Kant por uma ética universal. Daí a pergunta: É possível generalizar a conduta de movimentar o trem por cima do corpo estendido nos trilhos, ainda que sem tocá-lo, sem o oferecimento de uma razão suficiente ao afastamento de um respeito ao princípio de dignidade à pessoa humana para além de sua existência com vida? Ou seja, há que se considerar, além das condições estratégicas (fáticas e jurídicas) a envolverem os interesses daqueles diretamente afetados pelo dilema a questão pré-ética dos utilitaristas -, uma interpretação moral prévia que considere igualmente relevante os direitos de personalidade do corpo estendido no chão?
O que torna mais complicado enfrentar, na contemporaneidade, o tema da autonomia é justamente o fato de que nem sempre partimos de mesma definição acerca das condições de interação em sociedade. E aqui nem se fala de uma hipótese de ausência de espaço à autonomia, como em Hannah Arendt (1999), pelo reconhecimento da falta do espaço para o ato de pensar. A questão ora discutida é quanto à própria extensão acerca de uma definição do conceito de autonomia para a construção de juízos morais ou mesmo jurídico capazes de interferirem de forma significativa em conflitos complexos, como por exemplo, no campo da bioética, na definição de capacidades ou no recente debate sobre o direito dos animais não-humanos inclusive para o reconhecimento de capacidade própria.
Há quem compreenda, como Nussbaum, que a autonomia possa ser uma condição precária de "existência finita" (NUSSBAUM, 2013, p. 192) e que, portanto, apenas se veja fortalecida quando existente uma consciência - e, mais, uma condição de reconhecimento a priori - de uma vulnerabilidade no corpo social. O que representa, de certa forma, um retorno ao pensamento antigo baseado em virtudes e restrições desde logo justificadas e fundadas numa justiça distributiva repaginada pela ideia de “cooperação social” (2013). Ou ainda, compreender, na linha de Dworkin (2014), que é possível distinguir fronteiras entre a boa vida e o bem viver, dimensionando ideais éticos distintos para a vida com dignidade e para o alcance de condições fáticas suficientes (na saúde, nos relacionamentos, nas circunstâncias econômicas) ao desenvolvimento de uma vida digna.
Mais recentemente, Michael Sandel (2013) igualmente propôs a discussão do tema a partir de situações de ética aplicada, em que discute hipóteses de “melhoramento genético” (2013, p. 13) – a partir da dualidade observada às descobertas genéticas, seja como promessa de melhora à saúde, seja como dilema de manipulação da natureza humana (2013, p. 19) - e de uma nova proposta de eugenia no mundo contemporâneo por uma ética sujeita a relativizações. A opção de Sandel, dadas às situações extremas de análise, é por uma ética que implique em ponderação frente aos casos apresentados, ainda que parta de uma concepção de autonomia quase sacra: “Ganharíamos mais cultivando uma valorização mais ampla da vida como dádiva que pede nossa reverência e restringe nosso uso” (SANDEL, 2013, p. 133).
Não é por acaso, portanto, verificar-se essa preocupação com as virtudes e com certo retorno a ideais antigos sobre o que deve ser contido, ainda que minimamente, na ideia do “bem”. A preocupação é justamente com a força do argumento apresentado por autores como Peter Singer à base de uma filosofia utilitarista que ganha corpo numa visão mais ampla de interesse. Quando tratamos, de forma séria, de temas como a questão da capacidade, do aborto e da eutanásia, da igualdade entre espécies e, portanto, não apenas entre humanos - pelo enfoque utilitarista, é atraente a construção filosófica oferecida que permite vencer, pela ideia de interesse, qualquer fronteira de questões de justiça principalmente em termos de igualdade - a envolver animais ou pessoas com determinadas incapacidades. Por outro lado, é extremamente preocupante, como aponta Nussbaum, partir de uma visão que “encoraje a produzir as melhores consequências gerais como ponto de partida correto para a justiça política” (2013, p. 417). E justamente é o que explica, para Nussbaum, certa retração a priori na construção de uma concepção de autonomia:
Realizar uma pequena lista das capacidades centrais, como direitos fundamentais baseados na justiça, é um modo de posicionar-se acerca do conteúdo. Mas é também, principalmente, um modo de anunciar nossa contenção diante de pessoas com concepções abrangentes diferentes (NUSSBAUM, 2013, p. 419).
A questão, por consequência, é a de compreender em que medida se deve estabelecer limites a priori a um exercício de liberdade intersubjetiva e de que forma devem estar justificadas razões sérias à restrição de toda e qualquer liberdade ao mesmo tempo em que se possa potencializar a autonomia como um princípio ainda relevante à moral na sociedade contemporânea. Algo que escapa ao enfoque utilitarista, mesmo na concepção mais liberal de Peter Singer, na medida em que o problema da justiça parte não de um foco central na análise de liberdades e, portanto, com ausência de preocupação centrada no valor da autonomia e sim na análise privilegiada de pressupostos de igualdade.
E esta talvez seja a questão perversa em relação à construção utilitarista do argumento moral de fundo: Para alcançar-se uma pretensão estratégica de cunho liberal e, assim, potencializar o melhor dos interesses a quem esteja diretamente relacionado num conflito, independentemente de juízos hipotéticos a priori -, a justificativa filosófica compreende uma premissa valorativa apenas de cunho igualitário amplo, capaz de criar patamares abstratos e meramente formais de igualdade na mesma proporção em que gera um risco de destruição significativa a toda tradição humanista de construção de valores à existência humana.
Não por outro motivo poderia se questionar a edição recente do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei no 13.146/15) quando promove alteração significativa no texto do enunciado normativo do art. 3o do Código Civil brasileiro ao extirpar o critério do discernimento e, portanto, da ideia de racionalidade para a determinação da capacidade civil. Não há como não reconhecer que se trata da adoção de um enfoque eminentemente funcionalista em relação à concepção de autonomia, na medida em que privilegiada uma ideia de igualdade formal e material entre os indivíduos, em detrimento de uma ponderação necessária acerca de critérios claros para o estabelecimento dos modos quanto à possibilidade de expressão da vontade.

Parte II: Liberdade e discurso jurídico
Num mesmo sentido, Jürgen Habermas reconhece a dificuldade de enfrentamento do problema das restrições de conduta quando analisa, exemplificativamente, a possibilidade de autolimitação normativa nas questões referentes à vida embrionária. Esclarece que esta interferência, de fato, não pode se voltar contra as intervenções da técnica genética em si” (HABERMAS, 2004, p. 61), inclusive por não se tratar de um problema da técnica, mas do alcance e do modo de intervenção que serão efetuados em concreto. Nem por isso adota uma postura favorável à eugenia liberal sem ponderação prévia. Ao contrário, propõe, para casos de interferência máxima e irreversível sobre a geração do outro como no caso de pesquisa clínica com embriões a partir da possibilidade de um diagnóstico genético de pré-implantação , quando ainda existam fronteiras amplas entre a investigação científica e as motivações a tanto, que sejam estabelecidos padrões a priori mais rígidos para a hipótese de uma eugenia negativa (HABERMAS, 2004b, p. 96), desde logo permitindo a verificação de freios à própria pesquisa, caso não apresentados objetivos claramente terapêuticos na intervenção sobre a geração da vida do outro. É o que garante, segundo Habermas, nas condições fáticas atuais, que se evite uma instrumentalização sobre a vida do outro quando ainda inexistente certeza acerca de um prognóstico de intenções e resultados científicos.
O exercício é justificado pela filosofia de bases discursivas. Se há interesse em continuarmos como uma comunidade moral, porque compreendida a necessidade de manutenção de pretensões de correção às condutas individuais para compatibilizá-las à vida em sociedade, permanece sendo relevante alcançar-se certo consenso em termos deontológicos, justamente porque se faz necessário tolerar a convivência social. Buscar descrever o fenômeno jurídico a partir do discurso prático - e sua versão especial, do discurso jurídico (ALEXY, 2012) -, impõe o compromisso ao intérprete de privilegiar o binômio da universalidade-particularidade, cujo cerne da discussão encontra-se na promoção de um direito geral de liberdade e na possibilidade ampla e aberta de problematizar sobre desejos, opiniões, interesses. O ambiente dessa discussão, ainda que possa ser limitado a determinadas condições, não é, contudo, um universo restrito aos interesses em jogo.
Não se parte, por consequência, de uma limitação estratégica que tenha traves estabelecidas a partir de um projeto determinado o que poderia conduzir necessariamente à compreensão de que importam apenas os interesses particulares daqueles afetados pelo dilema (SINGER, 2009, p. 32). Há um compromisso mais amplo de teste da racionalidade em termos universais, mesmo que a discussão proposta seja aparentemente de menor relevância. Por certo, na grande maioria das vezes, o próprio sistema oferecerá respostas potentes à solução dos conflitos. Mas para a fração específica de casos que demandam uma resposta distinta, seja porque ainda não foram testados, seja porque oferecem peculiaridades próprias, é fundamental que não se perca a dimensão da racionalidade na construção de uma resposta possível. E uma resposta que não tenha pretensões individuais na sua abrangência ainda que possa ser “individualizante em seu foco” (ROUANET, 2001, p. 33) -, mas que potencialmente reconheça um alcance igualmente institucional à solução que venha a ser adotada em concreto.
Sérgio Paulo Rouanet, identificando o mal-estar do mundo contemporâneo, justamente em face da construção de uma filosofia anti-subjetivista - que é, na sua essência, anti- humanista (ROUANET, 2001, p. 64) -, aponta de forma clara ser o particular, e não o universal, o grande adversário de uma ética universalista. E tal ocorre não pela destruição da particularidade o que seria típico a regimes totalitários e sim pela criação incessante da particularidade (ROUANET, 2001, p. 65). É o particular que “transfigura ideologicamente particularidades empíricas existentes, ou cria essas particularidades (...), balcanizando o mundo para melhor controlá-lo” (ROUANET, 2001, p. 65). O que permitiria, inclusive, a justificação da particularidade pela banalização que o universal poderia, em tese produzir. Circunstância, contudo, que não condiz, por excelência, com a filosofia discursiva, como bem ressalta Rouanet: O universalismo iluminista “não preconiza o genocídio das particularidades existentes. O que ele recusa é a criação ideológica de particularidades fraudulentas, ou o uso ideológico de particularidades reais, como álibi para a dominação ou como pretexto para silenciar a crítica” (ROUANET, 2001, p. 69).
Por isso parte-se da compreensão de que, prima facie, impõe-se a observância a um princípio que exige a maior medida possível de liberdade geral de ação. Mas tal amplitude de liberdade corresponde, proporcionalmente, a uma mesma extensão de liberdade negativa. Um conceito jurídico que se estabelece a partir da possibilidade de sempre sofrer restrições e que permite uma preocupação permanente com a composição de liberdades colidentes no espaço público. Não se pode pretender que entre o que é comum a todos haja espaço para, arbitrariamente, preferir-se um agir a outro com base numa valoração entre o melhor e o pior e a partir da perspectiva exclusiva dos envolvidos. Imprescindível é que se volte ao exame da razão prática evidenciada pelo problema concreto que envolve direitos fundamentais, não por meio do critério do que é bom, mas do que é correto. A correção propugnada não é aquela que corresponda a um ideal de validade incondicional ou absoluta. Trata-se, frente à perspectiva do discurso, de uma pretensão de correção disposta de forma ideal, mas também condicionada e aberta às circunstâncias próprias do discurso particular. Ou como esclarece Habermas nos seus Comentários à ética do discurso:
"No caso da razão prática, poder elucidar os elementos de um universo social sobre o que é melhor para os mesmos e sobre a forma como devem regulamentar a sua vida em conjunto, abrirá, então, a possibilidade a um conhecimento prático que é certamente construído a partir da perspectiva intrínseca ao nosso universo, mas que simultaneamente transcende esse horizonte” (HABERMAS, 1991, p.89).
Esta é a flexibilidade esperada de uma fundamentação racional, pelo discurso, na perspectiva de análise pragmática a um caso concreto. Daí porque não há como se falar no efetivo exercício de racionalidade quando se observam decisões fundadas em concepções estritamente utilitaristas no Direito. O que sustenta a pretensão de correção pelo discurso e, portanto, assegura unidade e autonomia ao sistema jurídico - é justamente a possibilidade de compatibilização entre a simultânea proteção de liberdades e a garantia de segurança jurídica pela escolha racional de uma solução correta a todo o caso empírico proposto a uma análise jurídica. Algo que, de forma alguma, combina com o atropelo do conceito de personalidade em plena luz do dia.

Conclusão
Para concluir, há que se compreender, efetivamente, que se torna cada vez mais difícil sustentar pretensões de correção moral numa vida de relação marcada pela virtualidade e por avanços tecnológicos fantásticos - que, inclusive, aumentam consideravelmente as chances de permanência da vida sobre a Terra. A experiência humana, contudo, apresenta uma tradição histórica que nos permite constantemente desconfiar do alcance dados aos interesses individuais quando se fazem ausentes compromissos morais a priori. E, principalmente, quando ignoramos aquilo que adquirimos como herança histórica em nome de uma correção de rumos, a partir do estabelecimento de premissas de comparação igualitária fundada, por vezes, num total desconhecimento acerca dos “pares de comparação” eleitos.
O ideal é que se possa, com a cautela suficiente, efetivamente dar crédito às conquistas filosóficas da humanidade nos últimos séculos, não desconhecendo a possibilidade de permanente alteração de paradigmas a que se sujeitam as estruturas vinculadas à moral. Enquanto tal não se vê superado por alternativas distintas e suficientes à construção do pensar, mantém-se a crença no valor intrínseco reconhecido à concepção de autonomia para os modernos.

Seguindo a compreensão de Habermas, “sem aquilo que move os sentimentos morais da obrigação e da culpa, (...) sem o sentimento da libertação conferido pelo respeito moral, sem a sensação gratificante proporcionada pelo apoio solidário(HABERMAS, 2004b, p. 100), em certa medida, viveríamos uma realidade sem restrições, mas igualmente sem controle sobre o espaço comum. Em pouco tempo, “perceberíamos necessariamente e é assim que pensamos o universo povoado pelos seres humanos como algo insuportável” (HABERMAS, 2004b, p. 100).

Bibliografia

ALEXY, Robert. Teoría de La argumentación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2012.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.


DUARTE, Leticia. Morreu na contramão atrapalhando o tráfego. Zero Hora, Porto Alegre, 09 de agosto de 2015.
DWORKIN, Ronald. A raposa e o porco-espinho. Justiça e valor. São Paulo: Martins Fontes, 2014.


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HABERMAS, Jürgen. A ética da discussão e a questão da verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2004.


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SINGER, Peter. Desacralizar La vida humana. Ensayos sobre ética. Madrid: Catedra, 2003.
___. Ética práctica. Madrid: Akal, 2009.

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Recebido em: 05.10.2015 Aprovado em: 13.10.2015 (1o parecer) 30.10.2015 (2o parecer)
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Como citar: CACHAPUZ, Maria Cláudia. Quando morrer na contramão não mais atrapalha o tráfego. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 4, n. 2, 2015. Disponível em: . Data de acesso.
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17/05/2016

É possível a autotutela para a retomada de bens públicos invadidos?

A FARRA DO ESBULHO DE BENS PÚBLICOS
Por Nelson Rosenvald
“Paz, te peço. Ouso fazer tudo que faz um homem; quem fizer mais, é que deixou de sê-lo” 
( Macbeth, Shakespeare).

Inicio o texto com a principal frase da peça que definiu o imaginário ocidental moderno. Ela é dita por Macbeth, em resposta a sua esposa, quando esta o incita a assassinar Duncan. Significa, basicamente, que há uma fronteira entre a civilização e a barbárie que não pode ser cruzada, sob pena de sermos privados de nossa humanidade. 
Fenômeno recente, porém reiterado, tem sido a invasão de escolas, universidades, assembleias legislativas e prédios públicos por parte de estudantes e movimentos sociais. Perplexas, as autoridades reagem a procura de liminares de reintegração de posse, cujo tempo de gestação e condicionantes impostas pelos magistrados não corresponde, por vezes, à necessidade estatal de recuperar o efetivo exercício do poder de fato sobre o bem público e afirmar a credibilidade da administração. A meu ver, quatro questões estritamente jurídicas impactam na solução do problema. Primeiro: trata-se efetivamente de invasão de bens públicos ou de mera “ocupação”? Creio não ser possível se cogitar de ocupação, vocábulo unicamente reservado ao apossamento de bens abandonados e despidos de função social, sejam eles particulares ou públicos (bens dominicais, terras devolutas). De modo diverso, denomina-se invasão, o ingresso e injusta permanência em bens que efetivamente sirvam a todos (v.g. esbulho ambiental) ou estejam afetados por uma atividade pública (escolas, postos de saúde). Mesmo que despido de violência explícita ou clandestinidade (art. 1.200, CC) o esbulho se consuma no momento em que servidores públicos são impedidos de realizar a sua atividade, posto excluídos do exercício de ingerência sobre o bem, sendo o patrimônio público abruptamente privado de sua vocação comunitária. 
A resposta ao primeiro questionamento atraí uma segunda indagação: seriam os invasores qualificados como possuidores? A resposta é evidentemente negativa. Quem ingressa em bem público de uso especial e desvirtua a sua finalidade é mero detentor. A detenção é uma posse desqualificada pelo ordenamento jurídico, sendo considerada um fato ilícito. Ora, os bens públicos destinados à sociedade são insuscetíveis de apropriação por particulares. Em clássica obra sobre a posse, o Ministro Moreira Alves ensina que “a vinculação jurídica da coisa a uma finalidade pública tem a primazia absoluta sobre qualquer situação jurídica privada, pois tal finalidade afasta a ideia de posse do particular” ( Posse, 2. Ed, Vol. II, p. 170, Ed. Forense). Antes de regra jurídica (art. 100, CC), o cuidado com a coisa pública é uma norma básica de civilidade no contrato social.
Havendo detenção e esbulho de bens públicos, podemos avançar ao terceiro questionamento. Há necessidade do Estado ingressar com ação de reintegração de posse para reaver o poder fático sobre tais bens ou há outra alternativa jurídica? A tutela possessória judicial não é o único mecanismo para o exercício de pretensões diante de uma turbação ou esbulho. Da mesma forma que se permite a um particular uma rápida e eficaz defesa diante de uma agressão atual a sua posse, evidentemente, o poder público pode se valer da via extrajudicial da autotutela, a fim de recuperar a gestão sobre o bem ilicitamente subtraído por particulares. As premissas para o exercício da legítima defesa da posse ou do desforço imediato estão devidamente descritas no § 1o do artigo 1210 do Código Civil. Presteza do exercício de defesa, moderação e proporcionalidade nos meios de repulsa à injusta agressão são condições essenciais para que a autoridade policial restitua o patrimônio público à sua finalidade, dentro da legalidade estrita e legitimidade constitucional. De forma enfática, preconiza o Decreto-Lei n. 9760/46 (Lei que rege o patrimônio da União) em seu Art. 20 que “Aos bens imóveis da União, quando indevidamente ocupados, invadidos, turbados na posse, ameaçados de perigos ou confundidos em suas limitações, cabem os remédios de direito comum”, o que implica tanto no manejo das ações possessórias como, das providências de polícia administrativa pela via da autotutela.
Por último, há uma questão ideológica que permeia a tolerância generalizada à privatização de espaços públicos. Para aqueles que se consideram progressistas, a “ocupação política” seria uma sofisticada forma de afirmação de direitos fundamentais. Legitimar-se-ia a desobediência civil contra o conservadorismo da ditadura da maioria silenciosa (alunos que desejam estudar, funcionários que pretendam trabalhar, pais que pretendam prover educação aos filhos e a sociedade que aposta na segurança jurídica), com premissa teórica forjada no pedantismo intelectual daqueles que admiram tudo aquilo que seja popular, cujo mérito intrinsecamente reside no fato da iniciativa partir das vítimas do sistema.
De fato, é vergonhoso o corte da merenda escolar e a recusa do repasse dos recursos básicos do ensino. Todavia, em sociedades que cultivam a responsabilidade individual, o exercício da liberdade de manifestação se conforma ao ordenamento jurídico, jamais pela banalização da invasão e depredação do patrimônio público, bem como do impedimento ao direito de ir e vir de quem queira exercer a sua profissão. Na ótica do relativismo, não me surpreende que o ilícito da invasão de bens públicos seja glorificado como conduta merecedora de tutela. Enfim, associo-me aqueles que desejam preservar a cultura e a própria civilização, quando tudo em volta parece ruir. Se não houver uma predisposição à contenção de instintos básicos, nessa marcha da insensatez, em breve os pseudo-heróis da resistência democrática não apenas serão louvados, como ainda farão jus a indenização por benfeitorias e acessões ou mesmo serão premiados com uma usucapião sumária.
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Lei 13.286/16 modifica a responsabilidade civil dos notários e registradores no exercício de sua atividade típica.

A lei 13.286/2016 e a responsabilidade subjetiva dos notários e registradores no exercício da atividade típica

terça-feira, 17 de maio de 2016
Fonte: http://www.migalhas.com.br/Registralhas/98,MI239331,61044-A+lei+132862016+e+a+responsabilidade+subjetiva+dos+notarios+e
Vitor Frederico Kümpel e Rodrigo Pontes Raldi
Na última terça-feira, 10 de maio, foi publicada a Lei 13.286/16, que modifica a responsabilidade civil dos notários e registradores no exercício de sua atividade típica, alterando pela segunda vez a redação do art. 22, da lei 8.935/19941. Trataremos desse tema, na coluna de hoje, em razão de sua atualidade e da extrema relevância que representa para a prática notarial e registral, pondo fim à discussão acerca da responsabilidade de tabeliães e registradores. Nas próximas colunas quinzenais, daremos continuidade à série de artigos que versam sobre as mudanças implementadas pelo novo Código de Processo Civil em matéria notarial e registral.
A questão da responsabilidade civil por atos praticados por notários e registradores era controversa e durante muito tempo tem ocasionado discussões acirradas, sobretudo quanto à necessidade de demonstração da culpa dos sujeitos incumbidos do exercício da atividade eminentemente pública por delegação, nos termos do art. 236, da Constituição Federal. 
Nesse contexto, surgiram diferentes correntes que buscavam explicar a natureza dessa responsabilidade. Em primeiro lugar, há o posicionamento majoritário dos acórdãos do Supremo Tribunal Federal, acompanhado por parte da doutrina2, de que os tabeliães e oficiais de registro são funcionários públicos, ainda que o exercício de seus serviços se dê em caráter privado, de modo que o Estado deve responder objetivamente pelos danos causados por estes sujeitos aos usuários do serviço. Está em tramitação perante o STF o Recurso Extraordinário 842.846-SC3, ao qual foi reputada repercussão geral, para se decidir acerca da responsabilidade civil do Estado em caso de serviços delegados, bem como da natureza da responsabilidade civil de notários e registradores (se objetiva ou subjetiva).
Quanto à responsabilidade pessoal dos notários e registradores, havia duas correntes centrais. A primeira apontava para responsabilidade objetiva com fundamento na redação e gramaticidade do art. 22, da lei 8.935/19944, posteriormente alterada pela lei 13.137/2015. "Os notários e oficiais de registro, temporários ou permanentes, responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, inclusive pelos relacionados a direitos e encargos trabalhistas, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos".A redação permitia a interpretação de que a responsabilidade dos oficiais de registro e tabeliães independia de aferição da culpa na contratação dos prepostos, bem como da negligência destes durante a prática dos atos.
Adotava a legislação, portanto, a teoria do risco, imputando ao titular responsabilização objetiva e garantindo regressividade contra quaisquer dos seus serventuários apenas em caso de dolo (culpa lato sensu) ou culpa stricto sensu (leve ou levíssima).
A segunda corrente sustentava a incidência de responsabilidade pessoal subjetiva de notários e registradores5, mediante uma interpretação contextual fulcrada principalmente no art. 38, da lei 9.492/1997, interpretando-o analogamente aos oficiais de registro: "Os Tabeliães de Protesto de Títulos são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou Escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso". Por ser a Lei 9.492/97 superveniente, incidiria para todos os titulares de delegação, alterando, portanto a teleologia da lei 8.935/94, cuja redação originária remonta 19946.
Crítica a essa corrente pode ser feita na medida em que, pelo fato de a lei 9.492/1997 regular especialmente os Tabeliães de Protesto de Títulos, o art. 22, da lei 8.935/94 continuaria em vigor em relação aos oficiais de registro e demais tabeliães, porquanto não expressamente revogado pela lei posterior, bem como não conflitante com suas disposições, no que tange os demais prestadores de serviços notariais e registrais. 
Com a nova redação dada ao art. 22 da lei 8.935/1994, pela lei 13.286/16, cessa-se a polêmica quanto à responsabilidade pessoal do oficial de registro e notário, os quais responderão subjetivamente por danos causados no exercício da atividade típica: "Os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso".
Importante diferenciar, no entanto, dano decorrente do exercício de atividade típica de registro, que consiste em qualificar títulos, devolvê-los ou assentá-los; ou, no caso do tabelião, instrumentalizar a vontade das partes de modo a gerar eficácia, da atividade atípica, anexa ao serviço registral e notarial. Apenas em relação à primeira aplicam-se as regras do art. 22, da lei 8.935/1994 (responsabilidade subjetiva). Ocorrendo o dano em razão da relação de consumo criada entre os prestadores e o usuário (por exemplo, se o usuário escorrega e se machuca no interior do ofício), aplicam-se as regras de responsabilidade objetiva do Código de Defesa do Consumidor (diálogo das fontes).
Sem sombra de dúvida a lei gera um avanço, na medida em que proporciona a notários e registadores a possibilidade de ousarem mais na prática de seu ofício. O notário rompe o liame causal no exercício da atividade e, portanto, mitiga efeitos indenizatórios quando informa minuciosamente os efeitos ao usuário, fazendo constar informações adicionais nas escrituras públicas. Já o registrador, para quebrar o nexo causal, pode qualificar negativamente o título, que resta submisso à duvida registral, ocasião em que a responsabilidade passa ao Estado.
Concluindo, a nova redação dada ao art. 22, da lei 8.935/1994 põe fim à controvérsia acerca da responsabilidade civil de notários e registradores por dano causado aos usuários na prática da atividade pública a eles delegada. Tratando-se, porém, de dano causado por atividades anexas à notarial e registral, muitas vezes criadas em razão de uma relação jurídica de consumo entre oficial e usuário, a responsabilidade será objetiva, nos termos do art. 14, do Código de Defesa do Consumidor. 
O tema é bastante importante e controverso, e merece ser esmiuçado em sede própria. Ademais, a questão da responsabilidade subsidiária ou solidária do Estado por esses danos também deverá ser analisada em artigo próprio, porquanto complexa e controversa, lembrando-se que a questão será decidida em breve pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos da Repercussão Geral em Recurso Extraordinário 842.846-SC.
Continuem conosco!
Alegria!
__________
1 Já havia sido alterado pela lei 13.137/2015.
2 S. S. Venosa, Reponsabilidade Civil, 14a ed., São Paulo, Atlas, 2014, pp. 302 ss. 
3 "RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. DANO MATERIAL. OMISSÕES E ATOS DANOSOS DE TABELIÃES E REGISTRADORES. ATIVIDADE DELEGADA. ART. 236 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. RESPONSABILIDADE DO TABELIÃO E DO OFICIAL DE REGISTRO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. CARÁTER PRIMÁRIO, SOLIDÁRIO OU SUBSIDIÁRIO DA RESPONSABILIDADE ESTATAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA OU SUBJETIVA. CONTROVÉRSIA. ART. 37, § 6º, DA CRFB/88. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA". (STF, RE n. 842.846-SC, rel. Min. Luiz Fux, j. 6.11.2014).
4 Art. 22, Lei n. 8.935/1994: "Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática dos atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros o direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos"
5 S. Cavalieri Filho, Programa de Responsabilidade Civil, 11ª ed., São Paulo, Atlas, 2014, p. 307.
6 Art. 2º, §1º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro: "Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior".
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03/05/2016

Notícia: reconhecimento de filiação sociafetiva e multiparentalidade

Multiparentalidade

Menina terá no registro civil nome de mãe e pai de criação

Tio e tia da garota assumiram a guarda, pois mãe biológica não teria condições de sustentá-la.
segunda-feira, 2 de maio de 2016
O juiz de Direito Afif Jorge Simões Neto, da 2ª vara de Família e Sucessões de Santa Maria/RS, autorizou que o registro de nascimento de uma menina seja modificado para receber também o nome de seu tio e tia, pais de criação da garota. 
Segundo o magistrado, o postulado na ação é apenas a regularização de uma situação "que existe, faticamente, já há muito tempo". 
"Muito embora se pudesse argumentar que não há dispositivo legal que autorize a inclusão de dois pais - um pai e uma mãe - no registro de nascimento, há, aqui, verdadeira hipótese na qual a lei deve se adequar à realidade posta e não o contrário. A multiparentalidade é concreta e não uma simples teoria."
No caso, a mãe biológica da menina não teria condições de sustentá-la e sua irmã, casada, se dispôs a aceitar a guarda do bebê recém-nascido, criando-a.
"Assim que ela nasceu, a M. me deu ela. Então, tanto para mim como pro meu marido, ela é nossa filha", disse a tia em depoimento durante avaliação psicológica. A menina confirmava: "Minha mãe A. e meu pai me cuidaram e me cuidam até hoje. E eu sou muito feliz com a minha família".
Em sua decisão, Simões Neto afirmou que o tema da multiparentalidade só recentemente vem sendo apreciado pela Justiça, com bom acolhimento em recentes decisões no TJ gaúcho. De acordo com o juiz, o papel do Poder Judiciário é encorajar o afeto e o amor, não obstaculizá-lo.
O número do processo não foi divulgado pelo tribunal em razão de segredo de Justiça.
Fonte: TJ/RS
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