22/08/2016

A emancipação da pessoa com deficiência: uma paciente história em evolução - Por Cristiano Chaves de Farias

A EMANCIPAÇÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA: UMA PACIENTE HISTÓRIA EM EVOLUÇÃO 
Por Cristiano Chaves de Farias
Nesses empolgantes dias olímpicos, li uma notícia, relatando que Michael Phelps, um esportista notável, maior medalhista das últimas Olimpíadas, tem um transtorno de déficit de atenção e hiperatividade - TDAH. A sua mãe, inclusive, é engajada na militância da inclusão social das pessoas com deficiência (http://www.tdah.org.br/…/365-michael-phelpsportador-de-tdah…).
A notícia chamou minha atenção. Seguramente, a maioria esmagadora das pessoas não apontaria qualquer sinal de transtorno em Phelps. Ele não se emoldura no quadro que se pintou para as pessoas com deficiência. Por preconceito ou desconhecimento, o imaginário coletivo vê na deficiência um quadro patológico, díspare, quase alienígena. 
Na Idade Média se chegou a queimar em fogueiras as pessoas que possuíam alguma deformidade física, sob a alegação de que eram a encarnação do mal. 
Senhor, perdoa! Eles não sabiam o que faziam. Mas, não esqueçamos, naquele momento era a opinião da maioria. Mas, as coisas mudam. Inclusive, o próprio conceito de loucura é temporal e espacial. Que o diga Copérnico!
Lembro sempre da genialidade (parece que escreveu hoje) de Machado de Assis, em seu O Alienista - que estudei para o vestibular, mas ficou tatuado em minha memória. Simão Bacamarte, um médico que enxergava loucura em todos os seus pacientes, termina o livro internando a si mesmo. É orgasmática a passagem em que relata o motivo pelo qual internou a esposa, dizendo que estava aguardando ela se arrumar para sair, mas ela passou 30 minutos em frente ao espelho, se olhando. Só poderia estar louca! 
Em tempos contemporâneos, ainda temos muitas dificuldades para incorporar no cotidiano uma prática igualitária em relação à pessoa com deficiência. O Estatuto da Pessoa com Deficiência - EPD ainda é visto com desconfiança. Em 20 anos de atividade jurídica, nunca presenciei uma crítica tão contundente (e injusta) a uma lei. Impedir que se chame uma pessoa com deficiência (física, mental ou intelectual) de incapaz juridicamente vem gerando incômodos nos intelectos - que não usam, normalmente, o coração como expressão. 
Parece-me mais do que evidente (é humano!) que o simples fato de alguém ter deficiência não induz incapacidade jurídica. Ao revés. São conceitos independentes. Uma pessoa pode ser incapaz sem ter deficiência (como o pródigo ou o menor de 16 anos de idade). E a recíproca é verdadeira. Nessa esteira, o art. 12 da Convenção Internacional, celebrada em Nova Iorque e incorporada no Brasil em sede constitucional por força do art. 5º, §3º da Constituição, é de clareza solar ao estabelecer que a pessoa com deficiência terá o mesmo tratamento jurídico de qualquer outra pessoa, sem deficiência. Logo, somente se lhe pode imputar incapacidade quando não puder exprimir vontade, como reza o inciso III do Art. 4o do Código Civil, com a redação dada pelo Estatuto. 
Se uma pessoa sem deficiência só será reputada incapaz em casos tais, as pessoas com deficiência, também. Seria o exemplo do surdo-mudo (pessoa com deficiência física) que não puder exprimir vontade. Nesse caso, será tido como relativamente incapaz por não puder externar sua vontade, e não pela deficiência. 
A mudança é ainda mais alvissareira. O juiz, ao decretar a curatela do incapaz, estabelecerá um projeto terapêutico individualizado, indicando os limites da curatela e a extensão da atuação do curador. Ou seja, considera cada pessoa a ser curatelada em si mesma, pondo fim a um tempo de decisões padronizadas, que interditavam direitos civis de uma pessoa humana apenas trocando o número do processo e o nome das partes. 
As pessoas são diferentes e precisam ter respeitada a sua dignidade, por si sós. A diferença integra a humanidade!!! Não se pode tratar juridicamente as pessoas, ignorando que temos virtudes, potencialidades, defeitos, anseios, expectativas, estruturas emocionais... Enfim, vidas distintas! 
Aliás, os confins divisórios, as próprias fronteiras, entre a sanidade e a loucura são inatingíveis. E todos, sem exceção, carregam características pessoais diferenciadas. Tenho TOC com a porta do carro e de casa. Aperto várias vezes o controle do carro para me certificar que a porta fechou, até fazê-lo esbravejar. Se dependesse dele, estaria eu internado. Mas, me salvo com Raul, "controlando a minha maluques, misturada com minha lucidez"...
Em seu instigante livro (Bipolaridade e temperamento forte), o gaúcho Diogo Lara revela que personagens importantes da história tinham transtornos mentais, embora jamais se tivesse duvidado de sua perfeita sanidade: Fredy Mercure, Churchil, Cazuza, dentre outros. 
Filosoficamente, inclusive, acho que vale um reparo a uma ideia corriqueira entre os juristas: a intenção do EPD não é conceder proteção à pessoa com deficiência, mas, em verdade, estabelece a sua INCLUSÃO SOCIAL, com vistas a que se lhe confira autonomia existencial e patrimonial. Não se trata de simples norma protecionista, mas inclusivista. Por isso, a pessoa com deficiência, de fato, faz jus a garantias que efetivem inclusão, como o IPI reduzido para aquisição de veículo automotor, as vagas preferenciais em estacionamentos, o acesso prioritário e adaptável etc. Não são meras formas protetivas. Muito mais. São mecanismos de inclusão, emancipando a pessoa para que exerça, como bem queira, os seus direitos, em absoluto patamar de isonomia. 
Tenho consciência, porém, de que se trata de um movimento lento, aluviônico. É paulatina e gradual a absorção do ideal de igualdade. Como bem reflete o Lulu Santos, "ainda vai levar um tempo, pra fechar o que feriu por dentro...."
Apesar da minha franciscana paciência, assisto, com muita preocupação movimentos legislativos, em tentativa de absurdo retrocesso. Recrudescendo o tratamento da pessoa com deficiência, a PLS 757/2015, que tramita no Congresso, ignora o compromisso jurídico assumido pelo Brasil, juntamente com quase 200 outros países. Preocupa-me porque usa retórica, com textos eruditos, em esforço hercúleo para tentar, como dizia o italiano Leopardi, "mudar os móveis de lugar, para que tudo fique como sempre foi". Sinceramente, não acho que seja maldade, mas, provavelmente, vaidade intelectual. 
Resta-me clamar: Senhor, perdoa, eles não sabem o que fazem...
A verdade é que a mudança de paradigma não é bem absorvida pelo jurista. Como diz O grande educador lusitano Boaventura de Sousa Santos, um paradigma científico demora 2 gerações para ser superado depois de ser substituído. Isso porque os profissionais, formados sob a égide do paradigma anterior possuem dificuldades para enxergar o novo, e os novos profissionais serão formados, em um primeiro momento, por professores que foram formados pelo paradigma anterior. 
Calha com perfeição ao tema, a advertência de F. Ost, professor em Montreal, acerca da demora do jurista em absorver novas ideias. Afirma que se o Direito quer "exercer missão de mediação social, necessita de tempo, tanto na duração necessária para a reflexão, quanto no sentido de pôr em perspectiva os meios para levar em conta uma história social. Quando o tempo jurídico se reduz ao curto prazo ou se deixa prender na arapuca do instantâneo, torna-se aleatório.... À amnésia do passado acrescenta-se então a miopia do futuro; reina sozinha, soberana, a atualidade". Por isso, mantenho a paciência totalmente carregada, a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo.
Oxalá (para usar uma expressão bem baiana), tenhamos uma indignação social, contrariamente ao aludido projeto, com vistas a manter íntegro e hígido o sistema de inclusão. 
Para quem ainda insiste em achar que uma pessoa com deficiência deve ser enquadrada como incapaz, sugiro que acompanhe os jogos paralímpicos, que se avizinham. Talvez seja um bom momento para prospectar se aquelas pessoas são incapazes ou, em última análise, se a incapacidade não está no ideal aristocrático que povoa o coração e a mente de algumas pessoas...
Sobre o tema, para apresentar cores, tons e matizes até então não conhecidos, ouso recomendar a leitura do vol. 1 do nosso CURSO DE DIREITO CIVIL: Parte Geral, escrito a quatro mãos com o amigo Nelson Rosenvald, bem assim como o ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA COMENTADO ARTIGO POR ARTIGO, em coautoria com os colegas Promotores de Justiça Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Pinto, que mereceu prefácio do Senador Romário (grande defensor da matéria), ambos publicados pela Editora JusPodivm (www.editorajuspodivm.com.br), onde a matéria é tratada com verticalidade.
OBS: A imagem original pertence à Associação Desportiva para Deficientes (www.add.org.br)

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